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Políticas Públicas

Limitações ao poder da CPI-Covid para investigar atos de gestão de Estados, DF e Municípios

Nota Informativa da Consultoria Legislativa do Senado Federal, elaborada pelo Dr. Ronaldo Jorge Vieira Jr., ex-Consultor Geral da União, poarea atender a solicitação a Liderança do PT no Senado em 10.05.2021

SENADO FEDERAL

Consultoria Legislativa

NOTA INFORMATIVA Nº 2.800, DE 2021

Referente à STC nº 2021-04913, do Gabinete da Liderança do PT, que solicita Nota Informativa a respeito dos limites a serem impostos aos requerimentos de informação endereçados aos Estados, Distrito Federal e Municípios no âmbito da “CPI da Pandemia”.

1.     Antecedentes

A Solicitação de Trabalho à Consultoria (STC) em epígrafe foi assim resumida:

A CPI da Pandemia aprovou diversos requerimentos de informações e documentos destinados aos Estados, DF e Município, a exemplo do Req. 139. A redação dos citados requerimentos não é clara acerca dos limites das informações. Os Estados, DF e Municípios devem repassar todas as informações relativas a todos os recursos, ou podem se limitar as informações aos recursos repassados pelo Governo Federal? À vista disso, solicita-se nota informativa sobre o tema. Prazo: terça-feira, 11/05. (grifamos)

Trata-se, pois, de dimensionar os limites a serem considerados nos requerimentos de informação endereçados aos Estados, Distrito Federal e Municípios no âmbito da “Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia”.

A “CPI da Pandemia” foi criada a partir da leitura em Plenário, em 13 de abril de 2021, pelo Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, do Requerimento nº 1.371, de 2021, cujo primeiro subscritor é o Senador Randolfe Rodrigues. Lembramos que a leitura do Requerimento e criação da CPI foram determinadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de medida cautelar concedida em 8 de abril de 2021 no Mandado de Segurança (MS) nº 37.760, relator o Ministro Roberto Barroso.

Na leitura da matéria, o Presidente do Senado informou ao Plenário que estava anexando o Requerimento nº 1.372, de 2021, primeiro subscritor o Senador Eduardo Girão, ao Requerimento do Senador Randolfe Rodrigues e outros, por tratar de matéria conexa.

Assim, a “CPI da Pandemia” passou a ter dois fatos determinados a serem apurados: i) apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Estado do Amazonas, com a ausência de oxigênio para os pacientes internados (Requerimento nº 1.371, de 2021, do Senador Randolfe Rodrigues e outros); ii) apurar possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, valendo-se, para isso, de recursos originados da União Federal, bem como outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela pandemia do coronavírus SARS-CoV-2 (Requerimento nº 1.372, de 2021, do Senador Eduardo Girão e outros).

Eis o que consta, a esse respeito, das notas taquigráficas da Sessão deliberativa remota do Senado Federal de 13 de abril de 2021, publicadas no Diário do Senado Federal do dia seguinte1:

A Presidência comunica ao Plenário que recebeu requerimento do Senador Randolfe Rodrigues e outros Senadores, solicitando a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito composta de onze membros titulares e sete suplentes, para, no prazo de 90 dias, com limite de despesas de R$90 mil, apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Estado do Amazonas, com a ausência de oxigênio para os pacientes internados .A Presidência comunica ao Plenário que a leitura do referido requerimento está sendo feita nesta sessão do Senado Federal por determinação do egrégio Supremo Tribunal Federal, por força da medida cautelar expedida no Mandado de Segurança nº 37.760, pelo Exmo. Sr. Ministro Luís Roberto Barroso, que decidiu nos seguintes termos, aspas: ”defiro o pedido liminar para determinar ao Presidente do Senado Federal a adoção das providências necessárias à criação e instalação de comissão parlamentar de inquérito, na forma do Requerimento” a que se reporta, fecho aspas. Também foi protocolado requerimento do nobre Senador Eduardo Girão e outros Senadores, solicitando a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, valendo-se, para isso, de recursos originados da União Federal, bem como outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela pandemia do coronavírus SARS-CoV-2 – termos do requerimento do Senador Eduardo Girão, subscrito por outros Senadores. Os requerimentos contêm subscritores em número suficiente, nos termos do art. 145 do Regimento Interno do Senado Federal, e serão publicados para que produzam os seus devidos efeitos. A Presidência determina, nos termos do art. 48, §1º, do Regimento Interno, o apensamento do requerimento de autoria do Senador Eduardo Girão ao requerimento de autoria do nobre Senador Randolfe Rodrigues, por tratarem de matérias conexas.Com referência à conexão dos requerimentos e dos fatos neles expendidos, a Presidência, com base em parecer da Advocacia-Geral da Casa, esclarece que a apuração conjunta de fatos determinados pode se dar tanto no caso de ampliação do objeto de uma CPI já em funcionamento quanto no

1 Disponível em Diário do Senado Federal n° 49 de 2021 – Diários – Atividade Legislativa – Senado Federal. Acesso em 09/05/2021.

caso de reunião de requerimentos apresentados contemporaneamente para a instalação de uma única comissão investigativa, desde que não reste inviabilizado ou restringido o objeto dos requerimentos apresentados. Esta última é exatamente a hipótese de que tratamos hoje, nesta Casa, e que fundamenta a juntada e o apensamento dos requerimentos, respeitando a precedência do requerimento do Senador Randolfe Rodrigues, por regra regimental. Esclarece também que o requerimento do Senador Randolfe Rodrigues, nos termos do art. 260, inciso II, alínea “b”, do Regimento Interno – isso reitero –, tem precedência regimental por ser o mais antigo. Nesses termos, a Comissão terá como objeto o constante do requerimento do Senador Randolfe Rodrigues, acrescido do objeto do requerimento do Senador Eduardo Girão, este, portanto, limitado apenas quanto à fiscalização dos recursos da União repassados aos demais entes federados para as ações de prevenção e combate à pandemia do Covid-19, excluindo as matérias de competência constitucional atribuídas aos Estados, Distrito Federal e Municípios, na forma do que dispõe o art. 146, inciso III, do Regimento Interno, que reproduzo. Diz o art. 146: Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes: I – à Câmara dos Deputados; II – às atribuições do Poder Judiciário; III – aos Estados. Corroborando essa tese, com base também em parecer da Advocacia-Geral do Senado, esclareço que são investigáveis todos os fatos que possam ser objeto de legislação, de deliberação, de controle ou de fiscalização por parte do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional, o que, a contrario sensu, implica que estão excluídas do âmbito de investigação das comissões parlamentares de inquérito do Poder Legislativo Federal as competências legislativas e administrativas asseguradas aos demais entes federados. Portanto, o requerimento do Senador Randolfe Rodrigues, que traz o fato determinado e que ora é lido, é acrescido do requerimento do Senador Eduardo Girão em relação aos repasses de recursos federais aos demais entes federados, e ambos os fatos poderão ser investigados, com a limitação e com a observância do art. 146, inciso III, do Regimento Interno do Senado Federal a fatos que digam respeito exclusivamente aos demais entes federados, Estados, Distrito Federal e Municípios, a quem cabe a sua própria investigação através das Casas Legislativas respectivas, sob pena de usurpação de atribuição e de competência. Prestados esses esclarecimentos, a Presidência determina que se oficie aos Líderes para que façam as indicações de membros de acordo com a proporcionalidade partidária. Feito isso, será feita a designação do Colegiado por esta Presidência e posterior instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito. (grifamos)

Passamos de imediato à análise solicitada.

2.     Análise

O tema central da análise a ser empreendida nesta Nota diz respeito à capacidade de a “CPI da Pandemia” investigar eventuais desvios de recursos federais por Governadores e Prefeitos.

A Constituição Federal (CF) assegura no caput de seu art. 18 a autonomia político-federativa dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios. Há, ainda, no texto constitucional, um sistema de distribuição de competências legislativas e administrativas.

Decorre da análise sistêmica dessas normas constitucionais o necessário respeito pelas áreas de competência dos entes federados, sendo vedado aos Poderes de uma determinada esfera o exercício das competências de outra esfera da federação.

É tão importante esse equilíbrio que a Constituição alçou a forma federativa de Estado à condição de cláusula imodificável, de acordo com o que estabelece o art. 60, § 4º, inciso I.

Nesse sentido, não é constitucionalmente admissível que o Poder Legislativo federal exerça o controle externo sobre o Poder Executivo Estadual, Distrital ou Municipal. Competente para fazê-lo é, respectivamente, o Poder Legislativo estadual, distrital ou municipal.

O art. 70 da CF, por seu turno, estabelece que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de

receitas será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

O art. 146, inciso III, do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), que estabelece que não se admitirá CPIs sobre matérias pertinentes aos Estados, segue essa lógica federativa constitucional de repartição de competências e responsabilidades.

Todavia, quando o que está em jogo são os recursos federais repassados a Governadores e Prefeitos, a fiscalização pelo Congresso Nacional ou pelo Senado Federal ou Câmara dos Deputados é possível, obedecidos limites expressos fixados pela Constituição e pela legislação infraconstitucional.

É o que se depreende da análise da regra contida no inciso VI do art. 71 da CF que atribui ao Congresso Nacional o controle externo para fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município.

Assim, parece-nos constitucionalmente correta a decisão do Presidente do Senado Federal no sentido de admitir que a “CPI da Pandemia” fiscalize eventuais desvios de recursos federais destinados ao combate da covid-19 por gestores estaduais, distritais ou municipais. Essa é a única interpretação possível, sob uma perspectiva sistêmica, das normas constitucionais e regimentais envolvidas.

Há, portanto, base constitucional para que a “CPI da Pandemia” investigue eventuais desvios de recursos federais destinados ao combate da covid-19 por gestores estaduais, distritais e municipais.

2.1.          Limites à investigação da “CPI da Pandemia”

É fundamental, entretanto, que se atente para os limites da capacidade investigatória das CPIs.

Um primeiro aspecto a ser considerado é que não são passíveis de investigação pela “CPI da Pandemia” os recursos estaduais transferidos a municípios (por exemplo, recursos transferidos pelo Governo do Estado do Amazonas para o Município de Manaus), ainda que no âmbito do combate à covid-19. A CPI do Senado Federal somente permite a investigação sobre recursos federais (filtro 1).

Um segundo aspecto a ser analisado é que apenas os recursos federais transferidos de forma voluntária podem ser objeto de investigação pela “CPI da Pandemia”. É o que se extrai da expressa dicção do inciso VI do art. 71 da CF, quando submete ao controle externo do Congresso Nacional ou de suas Casas com o auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU) quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município (filtro 2).

José Afonso da Silva2 sustenta que o sistema tributário brasileiro se assenta na técnica de discriminação das rendas entre as entidades autônomas da Federação. Essa técnica divide-se, para fins doutrinários e pedagógicos, entre discriminação pela fonte, em que a Constituição indica o tributo que cada ente pode instituir, e a discriminação pelo produto, pela qual é feita a repartição de receitas pelos entes federados.

2 Ver Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª edição. São Paulo: Malheiros, 1999, pag. 696-706.

A técnica de discriminação pelo produto é típica do federalismo cooperativo. Nessa técnica, há a arrecadação de tributos por um ente que está, todavia, obrigado a repartir parte da arrecadação com outros entes. Veda-se a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego das receitas repartidas aos Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 160, caput, da CF).

Os recursos recebidos, por transferência de receitas, por todas as formas admitidas na Constituição e na legislação, pertencem, segundo José Afonso, sem limitação às entidades beneficiadas que os podem utilizar do modo que lhe parecer melhor.

Dessa forma, os recursos transferidos aos entes federados subnacionais de forma obrigatória, em face da técnica da discriminação pelo produto, pertencem aos próprios entes que são os responsáveis pela fiscalização e controle. Essa matéria não está submetida ao controle externo da União exercido pelo Congresso Nacional com o auxílio do TCU e, portanto, é alheia à investigação da “CPI da Pandemia”.

A matéria é polêmica. O TCU insiste que, no âmbito das transferências fundo a fundo, como as que ocorrem no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, em especial de seu art. 33, § 4º, a competência fiscalizatória é da União, o que atrai a participação do Congresso Nacional, com o auxílio do TCU, no controle externo, independentemente de as transferências serem realizadas por imposição constitucional ou legal.

Veja-se nesse sentido, por todas as decisões, o que consta do Acórdão nº 13.933/2019-TCU-Primeira Câmara, Relator o Ministro Marcos Bemquerer:

Compete ao TCU fiscalizar recursos do SUS repassados aos entes federados na modalidade de transferência fundo a fundo, ainda que incorporados ao patrimônio do ente, uma vez que constituem recursos originários da União e, portanto, sujeitam- se à fiscalização do Tribunal, sendo irrelevante se tratar de transferência legal, e não de transferência voluntária. (grifamos)

Todavia, na página específica do TCU que trata da jurisprudência mais relevante relativa ao tema da saúde3, só há referência a uma decisão do STF, decisão monocrática do Ministro Ricardo Lewandowski proferida no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) nº 462.448/SC, que vai no sentido de admitir a competência do Congresso Nacional e do TCU na fiscalização de recursos obrigatórios transferidos aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Eis a ementa:

3 Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/tcucidades/areas-de-interesse/saude/. Acesso em 09/05/2021.

PROCESSO CIVIL. SUS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.    PRECEDENTES DA CORTE. O fato de os Estados e Municípios terem autonomia para gerenciar a verba financeira destinada ao Sistema Único de Saúde não afasta a competência da Justiça Federal para julgar a demanda em que se discute a malversação dos recursos, uma vez que é responsabilidade da União Federal acompanhar e supervisionar a sua aplicação, nos termos do art. 33, § 4º, da Lei n.º 8.080/90. (grifamos)

Ponderamos que a redação do art. 71, VI, da CF é expressa no sentido de admitir o exercício do controle externo pelo Congresso Nacional com o auxílio do TCU apenas nas hipóteses de transferência voluntária dos recursos federais.

Esse entendimento é absolutamente compatível conceitualmente com o sistema brasileiro de discriminação de rendas, mais especificamente com a vertente da discriminação pelo produto (participação em impostos de decretação de um ente e percepção por outros; participação em impostos de receita partilhada segundo a capacidade do ente beneficiado; e a participação em fundos).

Nessas hipóteses, a União arrecada os recursos, mas os repassa aos entes federados subnacionais, sem a possibilidade de estabelecer qualquer espécie de condicionamento, à luz do que estabelece o art. 160, caput, da CF, com as ressalvas de seus incisos, quando trata da repartição das receitas tributárias, verbis:

Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos.

Parágrafo único. A vedação prevista neste artigo não impede a União e os Estados de condicionarem a entrega de recursos:

I- ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias;

II – ao cumprimento do disposto no art. 198, § 2º, incisos II e III. (grifamos)

Os recursos de transferência obrigatória determinada pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional escapam ao controle externo exercitado pelo Congresso Nacional, visto tratarem de recursos próprios dos entes subnacionais a serem fiscalizados pelo respectivo Poder Legislativo e Corte de Contas. Esse parece ser um aspecto a ser considerado na requisição de informações aos Estados, Distrito Federal e Municípios no âmbito da “CPI da Pandemia”.

Um terceiro aspecto a ser ponderado é que não é qualquer recurso federal que pode ser investigado no âmbito da “CPI da Pandemia”, apenas aqueles repassados para a área da saúde (filtro 3).

Essa afirmação, exclui, de plano, a possibilidade de investigação que incida sobre os repasses feitos pela União para os entes federados subnacionais destinados a atender, entre outras, áreas de atuação como geração de emprego e renda, educação, assistência social, transportes, moradia, etc.

Um quarto aspecto a ser avaliado é que apenas recursos federais transferidos para a área da saúde com o fim específico de combater a covid-19 podem ser investigados pela “CPI da Pandemia” (filtro 4).

Dessa forma, os recursos federais transferidos para os entes subnacionais para a área da saúde, mas que se destinem a programas outros que não o combate à covid-19, não podem ser investigados pela “CPI da Pandemia”.

Os recursos federais transferidos para o combate à dengue, por exemplo, não podem ser objeto de investigação pela “CPI da Pandemia”. Esses recursos podem ser fiscalizados pelo Congresso Nacional ou por suas Casas com base nos dispositivos constitucionais mencionados (art. 49, X, art. 70 e art. 71, VI), mas não pela “CPI da Pandemia” que tem seu escopo determinado pelos requerimentos de criação, consoante o art. 58, § 3º, da CF.

Há, por fim, um quinto aspecto a ser considerado na análise da adequação jurídico-constitucional dos requerimentos de informação endereçados aos entes subnacionais no âmbito da “CPI da Pandemia”.

Há cerca de 30 anos, na década de 90 do século passado, o STF fixou as principais balizas hermenêuticas a serem observadas nos trabalhos desenvolvidos por comissões parlamentares de inquérito, entre elas, a de que o poder investigatório das CPIs não é absoluto4.

4 Ver, nesse sentido o Habeas Corpus (HC) 71.039, julgado em 07/04/1994, relator o Ministro Paulo Brossard; o HC 71.231, julgado em 05/05/1994, relator o Ministro Carlos Velloso; e o Mandado de Segurança (MS) nº 23.452, julgado em 16/09/1999, relator o Ministro Celso de Mello.

Um dos principais limites é o que estabelece que às CPIs é vedada a realização de devassas, apurações genéricas e abrangentes. A investigação parlamentar deve estar delimitada pelos precisos contornos do fato determinado (filtro 5).

E, no caso concreto, quais são os contornos do fato determinado postos no Requerimento nº 1.372, de 2021, do Senador Eduardo Girão e outros, no que concerne ao repasse de recursos federais a Estados, Distrito Federal e Municípios? O Requerimento menciona expressamente a necessidade de apurar possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, valendo-se, para isso, de recursos originados da União Federal, bem como outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela pandemia do coronavírus SARS-CoV-2.

Os trabalhos da “CPI da Pandemia” devem partir, então, de denúncias formalizadas, inquéritos instaurados ou, no máximo, de fortes indícios que indiquem a ocorrência de violação das normas constitucionais e legais que balizam o manejo de recursos federais pelos entes federados subnacionais.

Não pode a CPI promover devassa indiscriminada e requisitar dos entes federados subnacionais TODAS as informações referentes a TODOS os contratos, convênios, acordos, ajustes ou outros instrumentos congêneres, já que essa investigação genérica e abrangente viola os limites do fato determinado, requisito constitucional de validade previsto no art. 58, § 3º da CF, para a criação, instalação e funcionamento das CPIs.

Entendemos que todos os requerimentos de informação ou de oitiva de agentes públicos ou de testemunhas relacionados à transferência de verbas federais para entes federados subnacionais devem levar em consideração estes cinco filtros, de forma cumulativa: somente serão objeto de investigação pela “CPI da Pandemia” os recursos federais (1) voluntários (2), destinados a área da saúde (3) e, especificamente, ao programa de combate à covid-19 (4) e que se limitem a investigar os casos em que haja denúncias formalizadas, inquéritos instaurados ou, no máximo, fortes indícios que indiquem a ocorrência de violação das normas constitucionais e legais que balizam o manejo de recursos federais repassados aos entes federados subnacionais (5).

Essas são, em síntese, as balizas constitucionais, legais e regimentais a serem observadas pela “CPI da Pandemia” na deliberação sobre os requerimentos de informação endereçados a Estados, Distrito Federal ou Municípios, ou, eventualmente, de oitiva de gestores estaduais, distritais ou municipais.

2.2.          O Requerimento de Informações nº 139, de 2021, aprovado pela “CPI da Pandemia”

No detalhamento da STC é citado, exemplificativamente, o Requerimento nº 139, de 2021, como um dos requerimentos aprovados pela “CPI da Pandemia”, que se relacionam ao repasse de verbas federais a serem mais profundamente analisados.

Formulou-se a seguinte questão na STC: os Estados, DF e Municípios devem repassar todas as informações relativas a todos os recursos, ou podem se limitar as informações aos recursos repassados pelo Governo Federal?

Eis o inteiro teor do citado Requerimento, aprovado pela “CPI da Pandemia” em sua 2ª Reunião, ocorrida no dia 29 de abril de 2021:

139 – Senador Ciro Nogueira – Solicita aos 26 Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios de até 200 mil habitantes, o envio a esta CPI, em 15 dias, em meio magnético, de cópia integral: 1. de todas as notas de empenho (em PDF), 2. de todas as ordens bancárias (em PDF), 3. de todas as notas fiscais (em arquivo XML), 4. de todos os processos administrativos de despesa, independentemente de ter havido licitação ou dispensa ou inexigibilidade (em PDF) relativos à aplicação de TODOS os recursos federais destinados a cada um daqueles entes federados para o combate à COVID 19, incluindo, ainda: 4. os extratos bancários (em arquivo Excel) e 5. os documentos bancários de comprovação de todas os débitos e créditos ocorridos nas respectivas contas (em arquivo PDF). (grifamos)

Utilizaremos os cinco filtros propostos nesta Nota para fazer a análise de adequação jurídico-constitucional do Requerimento.

Vemos que o requerimento se refere a recursos federais (filtro 1), da área de saúde (filtro 3) e destinados ao combate da covid-19 (filtro 4).

Requer, no entanto, informações referentes a TODOS os recursos federais transferidos, com o que esbarra, a nosso ver, no limite à investigação estipulado pelo art. 71, VI, da Constituição Federal que admite o controle externo da União, exercido pelo Congresso Nacional, apenas sobre os recursos voluntários (filtro 2), excluídos os recursos de transferência obrigatória estipulados na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional.

Ademais, o Requerimento nº 139, de 2021, por seus termos, pretende promover apuração genérica, abrangente, verdadeira devassa sobre os Estados, Distrito Federal e Municípios, circunstância que caracteriza ação abusiva, inconstitucional e ilegal da CPI, que desconsidera os precisos limites do fato determinado a ser apurado (filtro 5).

Em síntese, o Requerimento nº 139, de 2021, não reunia condições de ser aprovado pela CPI, pois solicita informações referentes aos recursos de transferência obrigatória, em contradição ao que estabelece o art. 71, VI, da CF (filtro 2 indicado nesta Nota) e promove devassa injustificável que transcende em muito as balizas do fato determinado a ser apurado pela “CPI da Pandemia”, em violação ao art. 58, § 3º da CF (filtro 5 indicado nesta Nota).

Como o Requerimento já foi aprovado, entendemos que é sustentável, constitucional e juridicamente, que os Estados, Distrito Federal e os Municípios sejam orientados pela CPI a aterem-se às informações relacionadas aos recursos federais voluntários transferidos para o combate à covid-19 sobre os quais incidam denúncias formalizadas, inquéritos instaurados ou, no máximo, fortes indícios que indiquem a ocorrência de violação das normas constitucionais e legais que balizam o manejo de recursos públicos, com o intuito de afastar eventuais inconstitucionalidades ou ilegalidades nos trabalhos da CPI (filtros 1 a 5 indicados nesta Nota).

Esse raciocínio vale, evidentemente, para requerimentos similares ao Requerimento nº 139, de 2021, eventualmente aprovados e para os que venham a ser apreciados pela “CPI da Pandemia”.

3.     Considerações Finais

Em síntese do que foi exposto, apresentamos as seguintes considerações finais:

a) entendemos que todos os requerimentos de informação ou de oitiva de agentes públicos ou de testemunhas relacionados à transferência de verbas federais para entes federados subnacionais devem levar em consideração estes cinco filtros, de forma cumulativa: somente serão objeto de investigação pela “CPI da Pandemia” os recursos federais (1) voluntários (2), destinados a área da saúde (3) e, especificamente, ao programa de combate à covid-19 (4) e que se limitem a investigar os casos em que haja denúncias formalizadas, inquéritos instaurados ou, no máximo, fortes indícios que indiquem a ocorrência de violação das normas constitucionais e legais que balizam o manejo de recursos federais repassados aos entes federados subnacionais (5);

b) sobre o Requerimento nº 139, de 2021, objeto de questionamento específico desta STC, aplicamos os cinco filtros propostos nesta nota (item a) e constatamos que: o requerimento se refere a recursos federais (filtro 1), da área de saúde (filtro 3) e destinados ao combate da covid-19 (filtro 4); requer, no entanto, informações referentes a TODOS os recursos federais transferidos, com o que esbarra, a nosso ver, no limite à investigação estipulado pelo art. 71, VI, da Constituição Federal que admite o controle externo da União, exercido pelo Congresso Nacional, apenas sobre os recursos voluntários (filtro 2), excluídos os recursos de transferência obrigatória estipulados na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional; ademais, o Requerimento nº 139, de 2021, por seus termos, pretende promover apuração genérica, abrangente, verdadeira devassa sobre os Estados, Distrito Federal e Municípios, circunstância que caracteriza ação abusiva, inconstitucional e ilegal da CPI, que desconsidera os precisos limites do fato determinado a ser apurado (filtro 5).

c) o Requerimento nº 139, de 2021, não reunia, portanto, condições de ser aprovado pela “CPI da Pandemia”;

d) como o Requerimento já foi aprovado, entendemos que é sustentável, constitucional e juridicamente, que os Estados, Distrito Federal e os Municípios sejam orientados pela CPI a aterem-se às informações relacionadas aos recursos federais voluntários transferidos para o combate à covid-19 sobre os quais incidam denúncias formalizadas, inquéritos instaurados ou, no máximo, fortes indícios que indiquem a ocorrência de violação das normas constitucionais e legais que balizam o manejo de recursos públicos, com o intuito de afastar eventuais inconstitucionalidades ou ilegalidades nos trabalhos da CPI;

e) esse raciocínio vale, evidentemente, para requerimentos similares ao Requerimento nº 139, de 2021, eventualmente aprovados e para os que venham a ser apreciados pela “CPI da Pandemia”.

São essas as considerações que parecem oportunas em face da urgência da solicitação.

Permanecemos à disposição do Gabinete da Liderança do Partido dos Trabalhadores para esclarecimentos adicionais que forem considerados necessários.

Consultoria Legislativa, 10 de maio de 2021.

Ronaldo Jorge Araujo Vieira Junior

Consultor Legislativo

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