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Políticas Públicas

A CONTRATAÇão TEMPORÁRIA NO SERVIÇO PÚBLICO E A PEC 32/2020

O Substitutivo apresentado pelo Relator da PEC 32/2020 à Comissão Especial da Câmara dos Deputados em 1° de setembro de 2021 trouxe importantes modificações às regras sobre a contratação temporária no serviço público.

                        A PEC propunha, inicialmente, que essa contratação se desse na forma de um dos novos tipos de “vínculos” (vínculo por prazo de terminado), revogando o atual art. 37, IX, que prevê a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.

                        Assim, na forma do art. 39, IV, Lei Complementar passaria a dispor sobre as normas gerais para “organização da força de trabalho no serviço público”, e cada ente disporia, por lei ordinária, sobre essas contratações (art. 39-A, II). Os servidores passariam a poder ser contratados para “vínculo por prazo determinado, “na forma da lei” para atender a necessidade temporária decorrente de calamidade e de emergência; de paralisação de atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço; atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; e atividades ou procedimentos sob demanda. Ademais, na forma do art. 37, § 8°, passaria a ser prevista a possibilidade de contratação, mediante processo seletivo simplificado, de pessoal com vínculo por prazo determinado, com recursos próprios de custeio, para atender a contratos de gestão de órgãos ou entidades, ou seja, uma amplíssima abertura a essa forma de contratação.

                        Com essas formulações, seriam superadas restrições fixadas pela jurisprudência do STF e aberto caminho mais amplo ao uso desse instrumento como forma substitutiva de servidores permanentes, ainda que contratados sem estabilidade, na forma do novo vínculo por prazo indeterminado proposto pela PEC, para cargos “não típicos” de Estado. E, sequer, haveria o impedimento de uso dessa forma de contratação para atividades típicas de Estado, posto que apenas aos titulares de “cargos típicos” seria assegurada a estabilidade e critérios e garantias especiais para a perda do cargo. Caso o servidor exercesse atividades típicas, mas por meio de “vínculo por prazo determinado”, para atender “necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos” ou “atividades ou procedimentos sob demanda”, estaria legitimada a sua contratação, burlando o princípio da proteção das atividades exclusivas ou típicas de Estado contra a precarização do seu titular.

                        A atual legislação federal sobre o tema (Lei 8. 745) já é bastante ampla, quanto a essas contratações. Desde sua vigência, já sofreu alterações no seu art. 2°, que trata das hipóteses de contração temporária, em dez oportunidades, sendo a última delas a Medida Provisória n° 922, de 2020. Em todas elas, ampliou-se a contração temporária, inclusive para prever situações como a identificação e demarcação territorial; de análise e registro de marcas e patentes; atividades finalísticas do Hospital das Forças Armadas; pesquisa e desenvolvimento de produtos destinados à segurança de sistemas de informações; atividades  técnicas especializadas, no âmbito de projetos de cooperação com prazo determinado, implementados mediante acordos internacionais; técnicas especializadas necessárias à implantação de órgãos ou entidades ou de novas atribuições definidas para organizações existentes ou as decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho; técnicas especializadas de tecnologia da informação, de comunicação e de revisão de processos de trabalho; didático-pedagógicas em escolas de governo; de assistência à saúde para comunidades indígenas; para atender a encargos temporários de obras e serviços de engenharia destinados à construção, à reforma, à ampliação e ao aprimoramento de estabelecimentos penais;  combate a emergências ambientais; e de vigilância e inspeção, relacionadas à defesa agropecuária para atendimento de situações emergenciais ligadas ao comércio internacional de produtos de origem animal ou vegetal ou de iminente risco à saúde animal, vegetal ou humana.

                        A MPV 922/2020, que não foi aprovada pelo Congresso, previa a ampliação de algumas dessas hipóteses (excluindo a exigência de atividades “técnicas especializadas”), e incluía outras como a “redução de passivos processuais ou de volume de trabalho acumulado”, a contratação para atividades “que se tornarão obsoletas no curto ou médio prazo, em decorrência do contexto de transformação social, econômica ou tecnológica, que torne desvantajoso o provimento efetivo de cargos”, para atividades “preventivas temporárias com objetivo de conter situações de grave e iminente risco à sociedade que possam ocasionar incidentes de calamidade pública ou danos e crimes ambientais, humanitários ou à saúde pública”, a “admissão de professor para suprir demandas decorrentes da expansão das instituições federais de ensino”, a “contratação de professor para suprir demandas excepcionais decorrentes de programas e projetos de aperfeiçoamento de médicos na área de Atenção Básica em saúde em regiões prioritárias para o Sistema Único de Saúde”, para a “assistência a situações de emergência humanitária que ocasionem aumento súbito do ingresso de estrangeiros no País”. Previa, além da ampliação das possibilidades de contração sem processo seletivo, a contratação, por tempo determinado, de aposentado pelo regime próprio de previdência social da União, por meio de “chamamento público”, hipótese já contemplada, quanto aos militares, pela Lei 13.954, regulada pelo Decreto nº10.210, que autorizam a contratação de militares inativos para o desempenho de atividades de natureza civil em órgãos públicos, em caráter voluntário e temporário.

            Frente à sua inadequação e patente inconstitucionalidade, o Congresso não apreciou essa MPV, que perdeu a validade 120 dias após sua edição, sendo, contudo, mantidos os atos praticados durante sua vigência.

                        A jurisprudência do STF vem firmando, em diversas ações de inconstitucionalidade e Recursos Extraordinários, requisitos para a validade da contratação temporária, sendo necessário, como decidiu na ADI 3.068-DF, julgada em 2004, e no RE 658026, com repercussão geral, relator o Min. Dias Toffoli,  julgado em 2014, que: a) os casos excepcionais estejam previstos em lei; b) o prazo de contratação seja predeterminado; c) a necessidade seja temporária; d) o interesse público seja excepcional; e) a necessidade de contratação seja indispensável, sendo vedada a contratação para os serviços ordinários permanentes do Estado, e que devam estar sob o espectro das contingências normais da administração. No caso de atividades permanentes, em que haja insuficiência de pessoal, ou mesmo no caso de criação de novos órgãos ou entidades, admite-se a contratação temporária, mas por prazo suficiente à formação de quadro de pessoal suficiente, mediante a realização de concurso público.

                        A PEC 32/2020, assim, buscava contornar tais requisitos de validade, ampliando os contratos temporários e, virtualmente, afastando a necessidade da realização de concursos públicos para cargos permanentes, típicos de Estado ou não.

                        O Relator, ao propor seu Substitutivo, optou por caminhos distintos.

                        Em primeiro lugar, afastou a noção de “vínculos” e preservou o art. 37, II da CF, quanto ao ingresso em cargos efetivos e empregos permanentes. Eliminou o “vínculo de experiência” que permitiria a contratação precária de servidores por prazos mínimos de um ou dois anos, conforme o tipo de cargo, sendo, porém, esses prazos meramente indicativos, pois a lei poderia livremente fixar prazo maior de experiência.

                        E, ainda, optou por manter o art. 37, IX, da CF, com nova redação.

                        Na sua proposta, passaria esse inciso a prever que “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado em regime de direito administrativo”, deixando de ser previsto o requisito da necessidade excepcional, desde que apenas presente a temporariedade dessa necessidade. Assim, a lei ordinária poderia ser ampliada, para contemplar um leque ainda maior de situações.

                        O regime de contratação permaneceria como “de direito administrativo”, e não trabalhista, afastando a hipótese proposta na forma do § 3° do art. 39-A, da aplicação dessas situações à contratação de empregados públicos temporários[1].

                        Contudo, a nova redação expressamente prevê que a contratação temporária “não poderá ter como objeto o exercício de atribuições próprias de servidores investidos em cargos exclusivos de Estado, assim compreendidos os voltados a funções finalísticas e diretamente afetas à segurança pública, à representação diplomática, à inteligência de Estado, à gestão governamental, à advocacia pública, à defensoria pública, à elaboração orçamentária, ao processo judicial e legislativo, à  atuação institucional do Ministério Público, à manutenção da ordem tributária e financeira ou ao exercício de atividades de regulação, de fiscalização e de controle”.

                        Lei geral, prevista no novo inciso XXXII do art. 22, fixaria as normas gerais sobre contratação por tempo determinado em regime de direito administrativo, definindo, entre outros aspectos, “formas de seleção pública, direitos, deveres, vedações e duração máxima do contrato”.

                        Até a edição dessa Lei geral, aplicar-se-ão as regras de transição previstas no art. 3º, proposto pelo Relator, revogando-se, apenas no que lhe for contrário, as normas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive as constantes de suas Constituições e Leis Orgânicas.

                        Segundo essas regras, a contratação por tempo determinado será realizada para atender às necessidades temporárias previstas em lei federal, estadual, distrital – dede que não incluam atividades exclusivas de Estado enumeradas no inciso IX do art. 37.

                        Esses contratos, mesmo os já vigentes, terão a sua duração, compreendida eventual prorrogação, limitada a dez anos, sendo que os contratos temporários em vigor na data de publicação da Emenda Constitucional permanecerão vigentes até o término do seu prazo ou por mais quatro anos, prevalecendo o período de menor duração. Ou seja, os atuais contratos, que, na forma da Lei Federal, poderiam ser prorrogados por lei, ultrapassando os prazos de prorrogação já admitidos (que podem, em alguns casos, chegar a 6 anos de vigência máxima), e que teriam, em tese, ainda 5 anos de vigência possível, somente poderão vigorar por mais quatro anos. Os que já estejam vigendo há mais do que dez anos, seriam extintos, mas a redação não deixa claro se essa extinção ocorreria de imediato, ou após o decurso do prazo remanescente, limitado a quatro anos.

                        A redação, ainda, não esclarece se a vigência a ser considerada, para tal fim, é a vigência inicial, ou aquela que resultaria em caso de prorrogação. Tampouco ela afasta, das regras de continuidade, os contratos já existentes que incluam atividades exclusivas de Estado, firmados pelo ente, como ocorre no caso da União com os contratos de médicos veterinários para a fiscalização agropecuária e que, segundo a lei em vigor, podem ser prorrogados por até 3 anos.

                        Em qualquer caso, a contratação por tempo determinado será realizada mediante processo seletivo simplificado sujeito à ampla divulgação, ressalvados os contratos para atender necessidades decorrentes de calamidade, de emergência ou de paralisação de atividades essenciais, para as quais será dispensado.

                        Seria vedada, ainda, a celebração de novo contrato com o mesmo contratado, antes de decorrido o prazo de vinte e quatro meses, contado da data de encerramento do contrato anterior, se a contratação originária houver dispensado a realização de processo seletivo simplificado. Assim, passaria a ser possível a recontratação temporária, no caso de ter o candidato sido submetido a processo seletivo, situação que, atualmente, a Lei 8.745 não permite, exceto no caso de calamidade pública ou emergência ambiental. É uma inversão da regra vigente, que é mais restritiva do que a proposta, e onde a dispensa da vedação é justificável em razão da própria excepcionalidade dessas contratações.

                        Ou seja, se, por um lado, amplia-se a exigência de processo seletivo, ainda que simplificado, por outro, também são ampliadas as hipóteses de recontratação, e um mesmo indivíduo poderá permanecer por mais de dez anos prestando serviços temporários, desde que o novo contrato seja precedido de processo seletivo, em regra.

                        Por fim, passam a ser assegurados, aos agentes públicos contratados por tempo determinado, direitos hoje não previstos, como o FGTS, férias, piso salarial, irredutibilidade salarial e  adicional de penosidade ou insalubridade e outros, que dependem do que sobre eles disponha a lei local. Nesse ponto, é um avanço, dada a situação de total precariedade desses trabalhadores; contudo, não foi estendida aos titulares de cargos em comissão a garantia do FGTS, demanda que, há muito tempo, aguarda solução.

                        É correto dizer que, quanto ao rol de possibilidades de contratação, o Substitutivo restringe essas situações, mas se trata de uma delimitação aplicável apenas e somente no caso das atividades descritas no inciso IX do art. 37. E, para tal fim, há que se interpretar o que diz esse inciso, quando requer que sejam apenas consideradas o “exercício de atribuições próprias de servidores investidos em cargos exclusivos de Estado”, assim compreendidos os voltados a funções finalísticas e diretamente afetas às nele enumeradas.

                        Ou seja, somente para as funções “finalísticas” afetas a tais atividades estariam vedadas, sendo possível, portanto, a contratação temporária para “atividades-meio”, conceito que, no âmbito da Reforma Trabalhista, já foi afastado para impedir a contratação de trabalhadores terceirizados.

                        A depender de como venha a ser interpretada a norma, portanto, em órgãos como a Receita Federal, o Banco Central, Agências Reguladoras e outras, atividades-meio poderiam ser objeto dessa contratação temporária, desde que não incidam sobre as funções finalísticas de fiscalização, regulação ou controle. Na Polícia Federal, a contratação poderia alcançar praticamente todas as atividades a cargo do órgão que não envolvam as funções finalísticas de segurança pública, perícia e polícia judiciária. Havendo a “necessidade temporária”, ainda que não seja “excepcional”, a lei poderia disciplinar essas contratações.

                        Pode-se afirmar, portanto, que – interpretadas em sentido estrito – as funções finalísticas nas áreas elencadas no inciso IX não poderão ser objeto de contratação temporária, em nenhuma hipótese, ou seja, nem mesmo para a preservação de serviços essenciais em caso de greve, como já admitiu o STF. Mas os contratos vigentes, com fundamento na legislação em vigor, poderiam ser mantidos, transitoriamente, desde que não seja ultrapassado o prazo de dez anos de vigência, ou por prazo máximo de 4 anos. Futuros contratos teriam sua duração definida na lei que vier a ser editada, mas, até lá, vigorará norma que permitirá que venham a ser firmados pelo prazo de até dez anos, prazo que é excessivo à luz da “temporariedade” da situação que os justifique.

                        Não se trata, veja-se, da impossibilidade da execução de “atividades permanentes” a cargo do órgão, pois o que pretende a nova redação é permitir a contratação temporária, mesmo que para superar situações não excepcionais.

                        Dessa forma, atividades como as da Previdência Social, relativas à concessão de benefícios, poderiam ser amplamente atendidas em caráter temporário, a pretexto de superar necessidade “temporária” decorrente do represamento da concessão de benefícios. O mesmo poderia ocorrer no caso da análise de processos de patentes pelo INPI, hipótese que o STF, no  julgamento da ADI nº 2.380, Min. Moreira Alves, DJ de 24/5/02, considerou inconstitucional em razão da natureza permanente das atividades que deveriam ser desempenhadas por servidores admitidos por concurso público.

                        No magistério, continuará a ser amplamente utilizado o instrumento da contratação temporária, sem a necessidade, sequer, da demonstração de situação excepcional. Quanto ao ponto, não se verifica mudança expressiva, dada a situação existente nos três níveis da Federação.

                        Já na segurança pública, surge a dúvida: será permitida a continuidade da contratação temporária de policiais militares, ou nas Forças Armadas? Trata-se de prática usual, e, interpretado amplamente, o art. 37, IX, não permitiria essa hipótese, por se tratar de função finalística na área de segurança pública. Todavia, os militares são regidos pelos art. 42 e 142 da CF, e, embora a norma esteja contida no art. 37, que trata dos princípios da Administração Pública, e não na seção específica que rege os servidores públicos civis, não é difícil prever que se entenderá que a norma (art. 37, IX) não se aplica aos militares, visto que sujeitos a regime próprio.

                        Não é, portanto, inócua a supressão da expressão “excepcional interesse público” como requisito para a contratação temporária, atualmente previsto no art. 37, IX. Embora seja requisito de interpretação controversa – e burlado, diuturnamente – ele é necessário para que o instituto do concurso público e o provimento de cargos efetivos continue a ser a regra, e não a exceção.

                        Trata-se de tema complexo, com inúmeras repercussões. É previsível que o Poder Executivo venha a exercer pressões sobre o Relator e a Comissão Especial, visando resgatar sua proposta original, e eliminar as “travas” propostas, mas preservado as flexibilidades previstas pelo Relator.

                        Esse, porém, é apenas um dos itens controversos do Substitutivo apresentado, e que evidencia a necessidade de uma discussão e apreciação mais cautelosa da PEC 32/2020, particularmente em momento de grave crise política e institucional como o atual.

                        Em 8 de setembro de 2021.

LUIZ ALBERTO DOS SANTOS

Consultor Legislativo

Advogado – OAB RS 26485 e OAB DF 49777

Professor Colaborador da EBAPE/FGV

Sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP) Mestre em Administração e

Doutor em Ciências Sociais/Estudos Comparados (UnB)

Publicado também em

https://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/90696-pec-32-analise-do-substitutivo-sobre-contratacao-temporaria


[1] Sobre essa hipótese, aplica-se a Lei n° 6.019, de 1974, que rege a contratação temporária em empresas urbanas, já alterada pela “Reforma Trabalhista” (Lei nº 13.429, de 2017).

Sobre politicapublica

Brazilian, civil servant, student of public policy, bureaucracy and interest groups in Brazil and the World.

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